A foto não devolve a imagem de uma Petrópolis aristocrática, palaciana e elitista, que queria fazer as vezes da Europa nos trópicos | Foto: Acervo da FBN
Petrópolis, conhecida por “Cidade de Pedro” ou “Cidade Imperial”, foi planejada lá em 1845 para ser o berço da realeza e da nobreza da época. A fama de uma “Europa nas Américas”, foi reforçada no plano de Major Júlio Frederico Koeller que decidiu realçar apenas as características de uma pólis erguida por mãos alemães, que ainda hoje, se é visível em quase toda esquina do centro histórico, através de marcações e monumentos contando orgulhosamente sobre o passado, invisibilizando os marcos da população negra, da classe trabalhadora e agricultora, apagando toda herança e memórias daqueles que participaram na construção de cada etapa, e lutaram pela permanência como indivíduos na cidade.
A maquete pensada a 182 anos atrás, por motivos políticos e idealistas, continua tentando sustentar a imagem de um Império, porém essa leitura não é consistente tendo em vista a população que vive dentro da sociedade petropolitana, de sua maioria afrodescendente. Nesse contexto, surgem grandes questionamentos sobre a existência centenária da cidade, que pode ser lida por outras visões, assim é o que mostra a obra literária “Petrópolis entre o conhecido e o (DES)conhecido” que traz diversos estudos, histórias e novas abordagens sobre a localidade.
“Petrópolis utiliza muito os ‘usos do passado no tempo presente’ e tira proveito disso, muito em função do turismo. Mas, esse passado que é recuperado pela cidade, na própria fala pública é recortado para atender determinados anseios políticos. Ele não dá conta, da complexidade da trajetória da cidade e muito menos da sociedade que se apresenta hoje. Pensar a pertença, acaba se confundindo nessa mediação e o que a gente identifica na história é uma presença bastante forte de outros grupos que a fala pública não cita. E é nessa virada de chave que o livro vem, para trazer outras narrativas, outros protagonistas, outras resistências, que vai exatamente pensar a construção da pólis a partir dessas existências”, ressalta o historiador Lucas Ventura da Silva, um dos criadores do livro.
A construção do historiador Lucas Ventura e da Mestra e Doutora em História, que possui diversas contribuições de estudiosos, que enxergam Petrópolis com outros olhos, aborda o aspecto de políticas de memória, conceito que traça uma linha temporal, onde marca o que deve ser lembrado, esquecido, silenciado na formação de uma sociedade. A Memória é a capacidade de resguardar acontecimentos, sentimentos e lembranças. Na sociedade ela é uma ferramenta que ajuda a construir a identidade de um indivíduo e do coletivo, pois serve como parâmetro para o futuro.
Cidade de quem?
Ecoa na estrutura da cidade, o sentimento de vazio e encapsulamento de memórias que ditam muito sobre o pertencimento do espaço, que praticamente é unilateralmente contado por uma narrativa embranquecida, vista através de pontos turísticos, casarões e palacetes, onde nas plaquinhas ou monumentos trazem feitos de barões, princesas, condessas, estudiosos e colonos, apagando a originalidade dessas construções. Apesar de ter muitos espaços que inicialmente eram formados por pessoas pretas como a Praça da Liberdade, Igreja do Rosário dos Homens Pretos, entre outros, não há muitos resquícios nos mesmos que demarcam o passado. Essa formação resume bem o conceito de máscara da memória e o silêncio da ‘Cidade Imperial’.
Em uma parte do livro, A professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e Global Scholar, Lilia Moritz Schwarcz através do texto “Uma Petrópolis africana” traz uma foto do fotógrafo Revert Henrique Klumb como objeto de estudo, que faz as narrativas contadas estremecerem. “Por essas e por outras é que a fotografia causa espanto. Nela, não está explícita a sanha construtora, e tampouco estão flagrados os palácios e grandes monumentos que costumam se colar à imagem de Petrópolis, como se fossem tatuagem. No documento aparece em primeiro plano um homem negro, com seus pés descalços, possivelmente um escravizado. Ele é tomado num momento de descanso, de fleuma, em uma das pontas daquela que é, ainda hoje, a mais prestigiada das avenidas da cidade: não por acaso, a “Avenida do Imperador”. A foto não devolve a imagem de uma Petrópolis aristocrática, palaciana e elitista, que queria fazer as vezes da Europa nos trópicos. Ao contrário, nela, um homem negro trajando um boné que ecoa, quem sabe, sua nação, surge à frente de uma cidade em construção e feita por mãos africanas e afrodescendentes”, trecho do texto.
“Cidade imperial é certamente a expressão mais estúpida que eu já ouvi em toda minha vida! A lembrança, perdida, sufocada pela memória roubada. As ruas me contaram muito mais do que a escola. Onde a história foi distorcida na esperança de uma Europa. Que nunca foi minha, vagando por palácios riquezas e sofisticação. A quem? Para quê? De quem? Enquanto uns se preocupam apenas em se manter à margem, e entregar uma boa imagem, a fachada daquilo que chamavam de sociedade, e como se não bastasse as ruas em que ando homenageia escravocratas. Pertencente se faz todo ser que nasce e não o que domina”, trecho de uma poesia declamada pela poetiza Marrom, idealizadora do Slam Mojubá, no lançamento do Livro: Petrópolis entre o conhecido e o (DES)conhecido.
O livro é um primeiro passo de um projeto que visa contar Petrópolis com outros olhos, ele estará disponível nas bibliotecas públicas da cidade. Para mais informações, e para quem desejar adquirir um livro físico, pode entrar em contato com a página do Instagram @Livro.Petrópolis.