“Defendo a criação de universidades indígenas nos territórios tradicionais, com propostas pedagógicas contextualizadas que valorizem a realidade sociocultural dos estudantes”, Alíria Wiuira.
A Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) celebra mais uma conquista para a valorização identitária dos povos tradicionais: a defesa da tese “Festa do Moqueado Guajajara: entre cantos e narrativas”, de Alíria Wiuira Benícios de Carvalho. Ela é a primeira doutora indígena do departamento de Letras e a primeira mulher do povo Guajajara a conquistar o título na instituição. Fruto de uma pesquisa etnográfica da tradição do povo Tenetehara (como os Guajajara se autodenominam), o trabalho traz contribuições para os estudos literários ao inserir cantos, narrativas orais e rituais indígenas como expressões de literatura.
A tese parte da cerimônia tradicional da Festa do Moqueado, também chamada de Festa da Moça Nova, a qual representa um rito de passagem das meninas para a vida adulta, em aldeias de terra indígena Araibóia, no Maranhão. O trabalho revela a profundidade poética e cosmológica dessa tradição, partindo de um diálogo entre o universo cultural Guajajara e os campos da literatura, antropologia e linguística.
“É preciso considerar que, antes mesmo da invasão europeia, os indígenas já poetavam e cantavam neste território”, Alíria Wiuira.
A pesquisa reúne cantos tradicionais, relatos orais e reflexões sobre os desafios contemporâneos dos povos indígenas, em especial das mulheres. Ao apresentar a festa como um patrimônio imaterial, isto é, um elemento cultural que não pode ser tocado ou visto, mas que é importante para a identidade de um povo, a tese ressalta sua dimensão poética e política. “A arte ritualística vai além da realização de uma cerimônia, é uma prática de demarcação cultural e territorial. Hoje as festas são expressões da vivacidade cultural e do território sagrado desses povos, diante das agressões físicas e simbólicas dos brancos”, afirma a pesquisadora.
Para Alíria, retornar às aldeias com o olhar de pesquisadora e, ao mesmo tempo, como mulher indígena foi um processo que causou certo estranhamento e preocupação sobre como os materiais seriam tratados. Por isso, explica que buscou dar relevância para esses estudos tanto dentro quanto fora das aldeias. “Muitas vezes, me senti entre dois mundos: o da academia e o do território, físico e espiritual. Essa travessia exigia sensibilidade, equilíbrio, discernimento e a força herdada das minhas ancestrais para não me afastar de nenhum dos dois, mas sim construir pontes entre eles”, afirma.
Alíria lendo a tese para a mãe , cacica da aldeia Ukair. (Foto: acervo pessoal)
Saberes não hegemônicos na literatura
Para a professora e orientadora da pesquisa Silvina Liliana Carrizo, uma grande contribuição da tese está na inserção das artes verbais não hegemônicas no campo dos estudos literários. “Alíria esteve nas aldeias, gravou, transcreveu e fotografou. Ela recolheu acervos que dialogam com cantos e narrativas de um conjunto festivo profundamente inscrito nos corpos das mulheres, como é o caso da primeira menstruação”.
A docente ressalta ainda que o estudo rompe com os paradigmas ocidentais da literatura ao reconhecer a complexidade estética dos cantos indígenas, com expressões orais, poéticas e cosmológicas que desafiam o modelo textual tradicional. “Essa pesquisa gera uma divulgação preciosa de formas culturais indígenas que podem ser utilizadas não só por outras populações originárias, mas também por todo o universo da educação, do ensino básico à universidade”.
Sobre a recepção de sua pesquisa na academia, Alíria observa que os estudos das oralidades indígenas ainda enfrentam certas barreiras no meio científico. “São barreiras geradas, principalmente, pela complexidade em catalogar e traduzir esses estudos. Mesmo assim, têm sido cada vez mais reconhecidos como essenciais. Sua presença rompe silêncios históricos, traz autoridade vivida e ressignifica os modos de produzir conhecimento”.
Além da pesquisa teórica e etnográfica, a tese de Alíria inclui a proposta de tornar literária uma narrativa Guajajara cujo formato é um conto popular. “Adaptar conhecimentos tradicionais para novos formatos é uma forma de manter viva a ancestralidade e fazer com que nossas vozes ecoem além das aldeias. Escrever é trazer para as letras nossa ancestralidade, é um modo de pronunciar nossas vozes para além das aldeias, até romper as barreiras da academia e o restrito círculo dos estudiosos”, conclui.
Impacto na universidade e nas comunidades
Segundo Silvina, orientar uma tese como essa em uma universidade pública brasileira representa um marco simbólico e epistemológico. “Estamos em um momento de transformação emocionante. A universidade está se abrindo a novos modos de produzir e pensar o conhecimento. Falta muito ainda, mas temos vivido momentos felizes e cheios de promessa. É um desafio e um convite a repensarmos nosso próprio estatuto acadêmico”, aponta.
Do ponto de vista coletivo, o trabalho também é uma forma de devolver à comunidade Guajajara a confiança depositada na pesquisadora, cujas raízes são tenetehara. Alíria conta que a principal preocupação dos líderes, durante sua pesquisa, era entender como o trabalho poderia beneficiar seu povo. “Ao apresentar os objetivos, destaquei que o trabalho não apenas buscava dar visibilidade às narrativas, cantos, lutas e realidades do nosso povo, mas também fortalecer os vínculos entre saberes tradicionais e acadêmicos”, explica.
Para a Alíria, essa integração é fundamental para ampliar as pesquisas sobre conhecimentos milenares e criar espaços para novas formas interculturais de arte e pensamento. Por isso, seu objetivo daqui em diante é atuar como docente no ensino superior, por acreditar que a presença indígena nesse espaço contribui para construir uma universidade mais diversa, decolonial e comprometida com a interculturalidade.
“Também defendo a criação de universidades indígenas nos territórios tradicionais, com propostas pedagógicas contextualizadas que valorizem a realidade sociocultural dos estudantes”, afirma.
Festa do moqueado, do povo Guajajara na aldeia Marajá, objeto de pesquisa da tese. (Foto: acervo pessoal)
Um canto de resistência
Além da análise dos cantos e das narrativas do povo Tenetehara, a pesquisa aborda questões políticas e sociais contemporâneas, como o enfrentamento ao preconceito e a luta pela garantia de direitos.
Durante a pandemia de Covid-19, a autora interrompeu a escrita diversas vezes em respeito a perdas de lideranças indígenas pela doença. Na tese, ela afirma: “meu povo me ensinou que existe o Ywy Porang, a Terra Bonita. Lá estão os encantados. E é por meio dos cantos e narrativas que suas vozes continuam presentes”.
Alíria conta que como pesquisadora indígena, essa é uma maneira de honrar seus ancestrais que abriram caminhos para que ela pudesse chegar até aqui.
Ações afirmativas e transformação na universidade
A trajetória de Alíria também se conecta ao impacto das ações afirmativas na UFJF. Sua defesa ocorreu apenas um ano após a implementação das cotas nos programas de pós-graduação da UFJF, o que evidencia o impacto desse mecanismo na ampliação do acesso de grupos historicamente excluídos.
Na graduação, a Universidade segue a Lei de Cotas, destinando 50% das vagas a estudantes de escolas públicas, com recortes para renda, autodeclaração étnico-racial (pretos, pardos, indígenas e quilombolas) e pessoas com deficiência. No Sisu 2025, por exemplo, mais da metade das 2.251 vagas ofertadas foram reservadas a esses grupos.
O ingresso e a trajetória acadêmica de Alíria mostram como o sistema de cotas tem papel fundamental na democratização do ensino superior, permitindo que saberes indígenas e outras perspectivas plurais estejam presentes na produção científica.
Confira a íntegra da tese:
Festa do Moqueado Guajajara: entre cantos e narrativas
Foto Acervo Pessoal