Quilombo nasceu em 1847 na cidade, através da luta de Sebastiana Augusta
Por Leandra Lima
Montanhas Rochosas são consideradas pelo lado lúdico da sociedade como guardiãs ancestrais da natureza, essa ideia se torna latente no Quilombo da Tapera, o único remanescente da cidade de Petrópolis. O território fundado em 1847, é rodeado por quatro grandes pedras – montanhas, que parece abraçar toda região, trazendo na memória um abraço dos griôs – mulheres e homens anciãos que carregam a história. Os responsáveis por passar a sabedoria aos mais novos” -.
O nascimento do quilombo carrega a força de uma anciã que lutou para fundar o espaço de resistência e dignidade dos negros escravizados alforriados. O quilombo nasceu quando a “Cidade Imperial” fazia quatro anos de idade, em meio a luta dos “libertos” que viviam na fazenda Santo Antônio, localizada no Vale do Cuiabá, em Itaipava. Sebastiana Augusta da Silva Correia foi a matriarca fundadora do Tapera.
Ela recebeu as terras de seu antigo senhor, Agostinho Corrêa da Silva Goulão. Sebastiana foi ama da fazenda, recebeu o nome que possuía de Agostinho, viveu 120 anos, era rezadeira, uma arte que hoje ainda resiste na região e conhecedora de ervas medicinais. O Território era povoado por negros africanos puros e atualmente, os descendentes mantêm a história e os conhecimentos vivos, em meio da luta pelo resguardo e direto a terra.
[…] “Tudo começou através da minha tataravó, Sebastiana Augusta, ela foi escravizada. Não falo que a terra foi doada, gosto de enfatizar que foi conquistada, porque para que hoje nós estejamos aqui, ela sofreu muito dentro da fazenda, teve o corpo usado e abusado, então não foi uma doação, foi através de muito sangue. E até hoje estamos aqui, somos descendentes direto dela” […], contou, Denise André Cassiano, uma das lideranças do quilombo.
Corpo resiliente
A permanência do território em seu espaço original, que hoje já não tem a mesma configuração, foi e é um caminho árduo. A luta desde a instalação é pelo direito à terra e a preservação da forma de vida em meio a natureza. Nesse sentido, apesar do êxito na criação da comunidade, a matriarca e os descendentes tiveram que resistir ao sistema opressor que apaga toda trajetória de luta do quilombo.
Há 178 anos, as terras que tinham sido doadas por Agostinho Corrêa Goulão à Sebastiana, acabaram sendo vendidas para outro proprietário um dia após a morte do fazendeiro. A façanha foi organizada pelos dois sobrinhos de Agostinho, que deram abertura do inventário e a leitura do testamento, passando a posse das terras, quatro anos depois para Irineu Evangelista de Souza, conhecido como Barão de Mauá. Após um tempo, a fazenda foi arrendada pelo Comendador Francisco José Fialho que a adquiriu do Banco do Brasil após Irineu ir à falência.
No processo de tramitação de posse, os quilombolas permaneceram nas terras sem sofrer diretamente pelos protagonistas das negociações. E assim, passaram mais de 80 anos da data que a matriarca e outros escravizados organizam os modos de vida no local. Com o passar do tempo, tudo parecia calmo, até o momento em que os direitos de permanecer no território de origem começaram a ser ameaçados por uma empresa do ramo agropecuário.
Nesse recorte as terras foram vendidas pelos herdeiros do Dr. Fialho para Argemiro Hungria da Silva Machado, presidente da Companhia Industrial Agrícola e Pecuária Itaipava, com objetivo de tornar a fazenda produtiva. Com a posse, dentro de uma semana, Argemiro instituiu o “Registro Geral de Hypothecario de Usufruto” em nome do povo negro que habitava o local naquela época, e assim, se iniciou o processo de desterritorialização, uma medida que promoveu um afastamento e desvinculação do território, cortando laço com o que foi construído no local, como a cultura e a forma de socialização dos que residiam ali.
Apesar dos males, a maior serventia deste documento é o registro histórico do território étnico evidenciando. Já que a região, desde a época do seu antigo proprietário, Agostinho, era ocupado por famílias negras cujos laços de consanguinidade (ligação direta, exemplo: filhos, netos, bisnetos e tataranetos) entre os antigos escravizados da fazenda, estão presentes dentre os integrantes das famílias que permanecem na formação.
Corpo vivo
Apesar das tentativas de extinção do quilombo, os afrodescendentes seguiram mantendo as formas originais, mesmo com as outras provações que vieram como o deslocamento do quilombo e a crescente especulação imobiliária, seguida da falta de direitos básicos como luz, água e transporte público. Em 2011, os quilombolas foram obrigados a sair do Tapera em razão do desastre socioambiental que aconteceu na Região Serrana, que foi considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU), como a maior catástrofe climática do Brasil.
“Na tragédia, tivemos que nos deslocar, porém ficamos com medo da especulação imobiliária e tentamos arrumar um espaço pelo Vale do Cuiabá mesmo. Então ficamos em uma cocheira por cerca de três anos– local destinado ao abrigo e descanso de cavalos e veículos -. Nós a reformamos, utilizamos três cômodos, as sete famílias, sendo que a cozinha, banheiro e lavanderia era comunitário. Depois dali fomos para o bairro Madame Machado”, relatou Denise.
Durante esse período, parte da família verificava o território para não perder o direito ancestral da terra. “Às tentativas de remoção da comunidade do nosso território tradicional, impulsionou e fortaleceu os movimentos de resistência local e luta. A ancestralidade negra do nosso grupo de família, marca o território com a própria maneira de executar o processo de resistência à opressão histórica sofrida”, disse.

O Tapera
De origem Tupi, “Tapera” significa fazenda abandonada. Denise André, ressalta que, no quilombo, todos os moradores vivem de modo tradicional de organização, ancorados na lógica das relações de parentesco, de apropriação, usando os espaços, sobretudo coletivamente. Hoje, 78 pessoas residem no quilombo, somando 27 famílias. Para o grupo, é uma vitória, já que muitos antepassados não conseguiram resistir à vida dentro da comunidade pelas dificuldades que ali encontraram. “Nós somos famílias resistentes, nos intitulamos assim, a história viva”, constatou.
Quilombo são comunidades formadas por povos que passaram por um processo de resistência territorial, social e cultural no período escravocrata no Brasil. É nesses espaços que se reúnem os saberes e tradições comuns, como forma de memória e resguardo cultural.
O Tapera é o retrato dessa luta, em solo petropolitano. Atualmente se organizam pela conquista da titulação das terras, pois a partir do título são construídas políticas sociais que atendem a demanda dos quilombolas em diversos aspectos, como direito aos acessos básicos de saúde, lazer, transporte e serviços de luz de qualidade, como apontando.
Até o início deste ano, a estrada que leva ao território era de terra batida, e quando chovia era quase impossível de caminhar. Além disso, até 2011, às crianças junto com os pais eram obrigadas a caminhar por mais de duas horas para chegar em uma unidade escolar, até o Estado do Rio de Janeiro, ofertar à comunidade o coletivo escolar, que agora leva e busca os estudantes no quilombo. “No território chega políticas públicas, mas não as com força para nós representar é preciso que nos leem como um quilombo remanescente”, enfatizou a liderança do quilombo.

Patrimônio
Quilombo é sinônimo de resistência. É importante resgatar as memórias e mostrar a potência deste patrimônio histórico dentro da Cidade Imperial. “Mais do que reconhecimento, precisamos que o nosso município nos respeite e realize as políticas públicas que nos são de direito como cidadãos petropolitanos”, reforça Denise. Petrópolis vem excluindo da história as contribuições dos negros no processo de crescimento e construção da cidade. Reconhecer esses espaços é um passo importante para que a população negra tenha referências reais de potências.
A partir desse recorte, o Correio Petropolitano inicia uma série de reportagens sobre o território, trazendo na coletânea esse primeiro cenário, que remete a história do lugar. Nas próximas trataremos assuntos como políticas públicas, infraestrutura dos serviços para com quilombo, englobando titulação da terra. Também terá um recorte sobre a potência das mulheres negras quilombolas, frente a luta por direitos, ecoando a voz para futuras gerações.
Fotos Gabriel Toledo / Evaldo Macedo / Leandra Lima